Céu de março





Doze anos. Tinha o cabelo quase raspado, semblante de chorão, nariz escorrendo, e largo. Gostava de pagode. Pele negra, achava que podia ter o mesmo pai que eu. A casa, que nunca fora grande, passou a me parecer menor. Tinha alma dum menino solto de rua, como a pipa que costumava subir na laje pra soltar. Tinha um acervo de gírias na mente, cantava funk escondido da mamãe, que era crente – contaria pro papai se flagrasse. Nas folgas dele eu quis mostrar que também sabia soltar pipa. Não sabia. Ninguém deixava eu empinar. Chegava sempre no embalo, quando já estava flutuando no céu azul do início de março, mormaço ardente. Papai deixava. O sol dava sede, fome, e eu já queria ir à padaria comprar Trakinas e guaraná, quando logo ele chega pedindo também. Papai tentava sempre dar o mesmo para nós; isso me era incabível. 
Não era de todo ruim ter um irmão novo mais velho, exceto quando ele achava que realmente éramos irmãos e que podia ligar o videogame sem pedir. Pouco a pouco foi falando menos gírias, foi até à igreja uns dias.Vestia roupas novas e tinha se adequado à escola. Pública, claro.
Quando chegava dezoito horas, eu já havia voltado do colégio e pedia para andar de patinete do início ao fim da rua, mas mamãe que estava fazendo a janta para o papai que estava para chegar do trabalho só permitiria que eu brincasse se Rael me olhasse. Ele então se comprometeu a fazer isso todos os dias, tinha o tempo vago, afinal, não mais trabalhava. Me olhava brincar todos os dias até a janta ficar pronta, quando em um desses não quis mais; mamãe se enfureceu e falou que ele não tinha que querer. Papai, ao chegar, o defendeu. Mamãe disse que ele não permaneceria aqui se não cumprisse as regras, enquanto papai diz em um tom alterado que se ele não ficasse, partiriam juntos. Pedi chorando para que meu pai ficasse. Ele, apenas, ficou.
‪O Play I voltou a ser todo meu durante a tarde – pois à noite não me era permitido jogar, também o computador e, sobretudo, papai. Rael é lançado de volta para o seu velho e emancipado status. Estranha um sombrio novo mundo que ele há pouco não lembrava que lhe pertencera: sem restrições, encargos, pais.
Novo dia se ativa, Rael se desperta, sem ter que estudar, ou quem sabe até comer. Papai sempre ligava para saber como estava, se precisava de algo. Mas, agora, sozinho, teria de se arranjar para sobreviver. Com um tempo foi sumindo, sabe-se lá o que descobriu fazer durante meses, um, dois, três anos... até que balas lhe perfuram brusca e traiçoeiramente as costas, advindas de piedosos homens fardados. Rael suspira seu último milésimo de vida um ar que jamais lhe mereceu. Seu voo, sobrestado, como de uma pipa quando cortada num eufórico céu de março.

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