O não dito

O papa Francisco celebrou, no dia 27 de março, a bênção extraordinária Urbi et Orbi, em meio ao gritante silêncio espalhado na grande esplanada do Vaticano, repleto de vazio.

Uma parte do texto integral da benção diz que “a tempestade desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades”. Através da imagem, caminhando pelo nada, ouve-se vozes pairando no silêncio, ecos que sobressaem daqueles que morreram sós e não foram velados pelos seus. Dos que pereceram em casa. Dos que ficaram para se despedir de seus pais, avós, maridos, esposas, filhos(a). 

Na caminhada de Francisco, pela praça, seus passos reverberam ruídos de morte e prisão, embora seus lábios pronunciem palavras de vida e de liberdade - por não se poder ser mais escravo do medo.

Primo Levi, em sua obra É Isto um Homem?, afirma que: “pela primeira vez, então, nos damos conta de que a nossa língua não tem palavras para expressar esta ofensa, a aniquilação de um homem”.

Não há linguagem nas profundezas onde há a desumanização, embora tentem elaborar metáforas, comparações, entre outras figuras de linguagem a fim de melhor representar o irrepresentável, o inaudito ou de tentar descrevê-lo. A dor e o sofrimento, substantivos abstratos, não chegam perto de retratar o que era vivenciado dentro do processo hediondo de extermínio massivo ocorrido em Auschwitz, contexto de quase-morte em que Primo Levi vivencia nos campos de concentração ao escrever o trecho acima. Tais experiências não podem ser transferidas, nem mesmo na catarse; no máximo se tem uma noção, e isso já choca; no entanto, essa ocorrência, o choque, pode ocorrer pela ausência do dito. Observe o trecho de É Isto Um Homem? :

Cada um se despediu da vida da maneira que lhe era mais convincente. Uns rezaram, outros se embebedaram; mergulharam alguns em nefanda, derradeira paixão. As mães, porém, ficaram acordadas para preparar com esmero as provisões para a viagem, deram banho nas crianças, arrumaram as malas, e, ao alvorecer, o arame farpado estava cheio de roupinhas penduradas para secar. Elas não esqueceram as fraldas, os brinquedos travesseiros, nem todas as pequenas coisas necessárias às crianças e que as mães conhecem tão bem. Será que vocês não fariam o mesmo?  (p.13-14, 1988)

Percorrendo esse tipo de escrita, é insuportável sentir como o comum da vida é inserido na narrativa de morte. O que antecede a fatalidade e o caos inclui o cotidiano. O comum pode ser uma espécie de vazio.

Esse tipo de escrita apresenta a sua experiência às próximas gerações nos detalhes corriqueiros que passam a protagonizar o espetáculo do momento, mesmo que com teor fúnebre: o vácuo da esplanada; as vozes suprimidas pelas convulsivas crises respiratórias que são agora reverberadas pelas gotas da chuva que molham o chão limpo e vazio; pela distância em que o Papa pôde caminhar sem que tenha ali sequer alguém que queira afagá-lo; nos ruídos dos passos que possuem efeitos de eco; no vácuo das pausas de um parágrafo ao outro da benção dada, sem que haja gritos, aplausos e conversações paralelas.

O Papa não fala só, com ele há vozes que emergem do silêncio, do simples, do não dito. É o comum que não é mais comum. O silêncio, no comum, revela-se como o grito mais pungente de súplica por absolvição e vida. 

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