Um dia nasceste, franzino, delicado como um copo de vidro, e alguém percorre noites adentro te fornecendo colo e uma espécie de alimento que emana de dentro do seu próprio ser.
Um dia na infância invadiste o quarto situado ao lado, após um pesadelo terrível, e os braços de um alguém te envolvem, entorpecem e abrigam.
Um dia estiveste digerindo a puberdade, foste instruído da maneira mais prudente e delicada acerca de como terás de se portar dali em diante; instaura-se a compreensão de que, neste ciclo, tu te tornas tão mulher quanto quem te orienta.
Um dia começaste a se tornar fã dos artistas pops do momento, e ela compra todas as revistas, pôsteres, assiste as suas séries e ouve suas músicas favoritas, mesmo falando que as de sua época foram, sem dúvida, melhores. Ela sabe tudo o que gostas; ama os seus amigos, revive tua mocidade contigo, vislumbrando cada instante.
Um dia ingressaste no curso superior, ela vê o quanto já estás se tornando adulta e teme por agora teres que andar sozinha na rua, indo a lugares distantes, sem ela para segurar sua mão ao atravessar o sinal ou te defender das más intenções alheias.
Um dia decidiste se casar, e vai ser com ela quem vais compartilhar cada destaque daquele ciclo, a imaginar como será sua vida, claro, inserindo-a, mesmo que sempre ela tema em ficar para trás, mesmo que respondas ser, isso, incogitável.
Um dia estiveste a dormir, quando subitamente recebes uma mensagem; já não tens a pessoa de sempre para contar o que há, pois é exatamente com ela que tudo o que não devia ocorrer está sucedendo.
Um dia entraste em uma casa, deparando-se com a pessoa de sempre ao chão, imóvel, suspirando ofegantemente, somente com os olhos fitados em sua direção, implorando por socorro; em seu olhar havia um brado imperativo para que não a perdessem; seu cérebro, ensanguentado, desorientado, a condicionava a um adormecimento involuntário duvidoso; és no instante capaz de mobilizar e convocar o universo por uma chance de resgate a quem sempre te foi ninho.
Um dia foste desolado ao presenciar sua fortaleza no auge de seu desfalecimento, sem saber se cada instante que viesse a se concretizar fosse um “adeus”. Mas tomas coragem e vais adiante, considerando que a superação do medo para encarar o seu maior tormento é menos pesaroso que carregar consigo o remorso de não tentar sequer oprimir sua recusa que te impede de, ao menos, esgotar as possibilidades de resolução; engoles o choro e dizes, sem saber se ela está a ouvir, sem saber se procede, que tudo voltará a ser como antes.
Um dia entendeste que nada voltará a ser como antes. Não que nunca volte a ser em todo o universo, mas, contigo, haveria de não ser. És a “sorteada” da vez. Tu sabes que voltarás para casa a hora que bem entender, dormirás o quanto quiser, guardarás novos segredos, e seu ninho não estará mais ali para te acolher, te saber, cobrar, querendo que chegues a casa pontualmente, mesmo que te declares dona de si. Como se fosse viável essa espécie de emancipação!
Um dia te calaste; contestas: para onde vão os segredos nossos não compartilhados? Os abraços já liberados, porém tardios? Os planos para depois desta desordem? As preocupações e sermões do futuro? Os afagos cotidianos? O ninho? Para onde ele vai?
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ResponderExcluirLindo!♥️
ResponderExcluirMe fez chorar.🥺